A MEMÓRIA E OS PARADOXOS DO MUNDO NO CINEMA CONTEMPORÂNEO – A SECÇÃO DA TERRA À LUA NO DOCLISBOA 2024
Soldier Monika, protagonista do novo filme de Paul Poet, incorpora as contradições do mundo contemporâneo que atravessam a secção Da Terra à Lua nesta edição do Doclisboa. Monika Donner é ex-soldado de elite, transgénero, ex-advogada no Ministério da Defesa austríaco, autora venerada pela extrema-direita, incorporando complexidades que desafiam simplificações populistas sobre os nossos tempos. Em Henry Fonda for President, de Alexander Horwarth, a vida do actor e as suas personagens comportam as contradições e paradoxos de um retrato dos Estados Unidos da América de ontem e de hoje, que, a partir de uma potente investigação, abrem chaves de leitura para o momento actual, à porta de eleições.
Como sempre, Da Terra à Lua apresenta os últimos filmes de realizadores fundamentais no mapa do cinema contemporâneo, como Lula, de Oliver Stone e Rob Wilson; The Invasion, de Sergei Loznitsa; Favoriten, de Ruth Beckermann; e Subject: Filmmaking, de Edgar Reitz e Jörg Adolph.
Desenham-se relações entre cinemas de diferentes lugares do planeta, intuindo uma contemporaneidade comum. Articulações histórico-políticas em paisagens atravessadas por sistemas de violência — Landscape and the Fury, de Nicole Vögele, na paisagem bósnia onde ressoa uma guerra ainda latente; Under a Blue Sun, de Daniel Mann, examinando a rodagem de Rambo III, filmado no deserto de Néguev com o apoio do exército israelita, revelando a relação entre a ficção cinematográfica e os mecanismos de ocupação e controlo territorial; A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, baseado no livro homónimo de Davi Kopenawa e Bruce Albert, viagem a uma paisagem em conflito, à casa dos Yanomami e à afirmação de soberania de uma sociedade que se apresenta em directo confronto com a vertigem capitalista.
Por outro lado, o programa volta a olhar para as ferramentas do cinema no trabalho de reconstrução testemunhal da História. Desde Dahomey, de Mati Diop, vencedor do Urso de Ouro da 74ª edição do Festival de Cinema de Berlim, que acompanha a devolução de 26 tesouros reais do antigo Reino do Daomé — hoje, Benim —, roubados no séc. XIX por saqueadores franceses, a Voices of the Silenced, de Park Soo-nam e Park Maeui, que retrata a história da forte presença coreana no Japão (Zainichi), através da recuperação de testemunhos filmados em 1985, e The Words Women Spoke One Day, de Raphaël Pillosio, uma busca pelas mulheres activistas argelinas que, em 1962, foram filmadas por Yann Le Masson aquando da sua libertação da prisão em França.
A guerra na Ucrânia é reflectida no programa através de filmes que apontam além de perspectivas generalizadoras, seja através da dimensão traumática da guerra no coração da intimidade, em Dad’s Lullaby, de Lesia Diak, ou através da inteligente forma de paciência de uma família em tempo de guerra, em In Limbo, de Alina Maksimenko.
O cinema português marca presença nesta secção através de dois filmes que, de formas distintas, pela dignidade testemunhal, abrem o nosso imaginário da História e da contemporaneidade, questionando identidades e narrativas. Em Por Ti, Portugal, Eu Juro!, de Sofia da Palma Rodrigues e Diogo Cardoso, a Guerra Colonial é reinterpretada com testemunhos de antigos soldados guineenses, recrutados para combater ao lado das Forças Armadas portuguesas, posteriormente abandonados pelo país por que combateram e expostos a perseguições e fuzilamentos, acusados de traição na sua terra natal. Kora, de Cláudia Varejão, oferece o retrato fotográfico como porta de entrada à memória, com cinco mulheres que, refugiadas no nosso país, vivem entre aquilo de que fugiram e um futuro de incertezas.
exergue — on documenta 14, realizado por Dimitris Athridis, é um rocambolesco behind-the-scenes de uma das maiores exposições de arte do mundo. As 14 horas que compõem este documentário acompanham o director artístico Adam Szymczyk e a sua equipa de curadores ao longo dos dois de preparação da edição de 2017 que decorreu em Kassel, na Alemanha, e em Atenas. A apresentação desta obra será acompanhada de uma mesa-redonda no CAM – Centro de Arte Moderna Gulbenkian, com a colaboração de Maumaus / Lumiar Cité, a presença do director artístico da documenta 14, Adam Szymczyk, e do realizador, numa conversa moderada pela investigadora e curadora Luísa Santos.
Sempre reconhecendo na História do cinema os gestos que nos ajudam a pensar o presente, Da Terra à Lua apresentará uma sessão dedicada à guerra no Médio Oriente e ao massacre em curso do povo palestino, com Here and Elsewhere (1976), de Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin e Anne-Marie Miéville, e The Palestinians (1975), de Johan van der Keuken.
Serão ainda apresentadas cópias restauradas de Um é Bom, Dois é Pouco, de Odilon Lopez, pioneiro do cinema negro brasileiro, e de El Castillo de la Pureza, do mexicano Arturo Ripstein, que assinalará o Dia Internacional do Património Audiovisual, a 27 de Outubro.